O mundo parecia desabar na noite lá
fora. A chuva e o vento forte, os raios e todo arsenal atmosférico disponível
não davam trégua, e batiam nas janelas insistentemente. Dentro do apartamento, Lynyrd Skynyrd ecoava baixinho.
Já passa do
segundo mês do ano e ele ainda não tivera coragem nem de tirar a barba. Alguns
dias se passaram desde seu último banho e, naquele momento, o seu apartamento
de 200m², com 2 suítes, living e varanda gourmet se
resumia à uma cama e uma garrafa d'água no canto do quarto principal. Chovia,
mas o calor era persistente. Era noite, mas a cidade lá fora estava
completamente iluminada.
Desde
Angélica, Pedro não foi mais o mesmo. Nada de shows, nada de festas, nada de
cerveja no bar. Era só o trabalho e a casa.
O que sentia
não era somente o que sente aqueles que perdem alguém querido. Tudo o que havia
construído, pensado e planejado tinha sido destruído com apenas um telefonema
ruidoso no meio da noite: - Ela morreu!
Sentia-se
melhor apenas por terem parado de lhe falar que "o tempo se encarregaria
de curar sua mágoa". Em dois anos nada havia realmente sido amenizado.
Apesar da
consciência da fragilidade, brevidade da vida humana e tudo mais, ninguém está
realmente preparado quando ela bate à porta. Na verdade, ninguém se prepara
para o ritual - até porque não se diz como se comportar ao entrar numa sala
fria de necrotério e o que fazer ao ver o corpo desfalecido de alguém que lhe
foi tão próximo.
Mas não
aquela noite. Após muito tempo ouvindo que deveria sair de casa às vezes,
finalmente aquele conselho parecia ser bom em ser seguido. Penteou os cabelos
castanhos e vestiu a primeira camiseta e calça limpas que conseguiu encontrar.
Pedro sentiu mesmo um desejo de sair para respirar. E assim o fez, mesmo com a
chuva ainda forte.
- Essa
cidade não pode ser feita de açúcar, pensou enquanto girava a chave na
fechadura da porta.
À medida que
dirigia em direção ao centro da cidade a chuva afinava. Ainda pegou o telefone
para ligar para os antigos amigos, mas achou melhor não. Sabia que os eles
acabariam se comportando como babás e não era isso que procurava. Queria apenas
ver rostos diferentes, embriagar-se um pouco e tentar voltar a ser um cara
normal.
Contudo, as
coisas haviam mudado. Começando pelo local. Antes parecia não parecia tão cheio
e as pessoas eram mais velhas. Os adolescentes haviam dominado o lugar.
Procurou ainda os bares que costumava frequentar, mas não os encontrou.
- Bem,
melhor assim. Menos rostos familiares.
Perambulando
mais um pouco, encontrou um lugar que pareceu ser legal. Ao lado da entrada,
uma placa dizia “cerveja bonita & gente barata”.
– Pelo menos
eles são sinceros!
Do lado de
dentro, o que havia do lado de fora: muita gente! Parecia que todos na cidade
tiveram a mesma ideia de sair de casa aquela noite. Pedro encostou-se no bar e
pediu uma cerveja. Enquanto aguardava desafiou-se a adivinhar qual a música que
a bandinha que se apresentava estava tocando. Não conseguiu. – Deve ser uma
dessa tal britpop. Antigamente, costumava ter discussões calorosas com os
amigos sobre essas coisas. Curiosamente, lembrou-se da vez que o Cidão disse
que era “por isso que as coisas estão como estão: ninguém gosta mais de
Hendrix!”. A lembrança lhe despertou um pequeno sorriso de canto de boca, que
foi interrompido pelo garçom com a garrafa de cerveja na mão.
Pedro andou
pelo lugar como se estivesse procurando algo, mas que estava na cara que não
encontrava.
- Teria sido
melhor ligar pros caras. Pelo menos eu teria companhia, era o que resmungava
enquanto entrava no banheiro.
Só mais uma
cerveja e iria pra casa. Tava decidido. Mais uma vez chegou no bar e ficou
esperando a cerveja. Dessa vez não tentou adivinhar musica nenhuma, mas olhava
a esmo para as pessoas do lugar. A maioria devia ter menos de 23 e já era o fim
da festa de muita gente que bebeu além da conta. Lá ao fundo, uma garota olhava
fixamente para Pedro. Aquilo o deixou sem-graça, um tanto desajeitado. Ficaram
nessa de se encarar por uns minutos e foram interrompidos devido à cerveja dele
que havia chegado finalmente. Pedro virou-se para pegar e quando se virou
novamente para a garota ela havia sumido. Deu de ombros e pôs-se a terminar
aquela cervejinha.
- Você é gay?
Pedro não
percebeu achegada da garota ao seu lado. Devido ao barulho, não entendeu o que
ela perguntou. Mas se tivesse entendido, a resposta seria a mesma:
- O que você
disse?
- Você é gay?
- Não, não
sou, respondeu ele, agora reparando bem naquela garota de olhos e cabelos bem
escuros e de pele branquinha. Por uns segundos tentou adivinhar a idade da
garota, mas bem rapidamente decidiu que já bastava de adivinhações por aquela
noite. Aproximou-se do ouvido dela e perguntou por que ela havia pensado isso,
sem deixar de notar o forte perfume que ela usava.
- Ah, sei
lá. Você está aí sozinho e aA gente ficou se olhando por um bom tempo e você não fez nada. O pessoal
que vem aqui geralmente não age assim.
Pedro pediu
outra cerveja pra ele, e para a ela. Ficaram conversando e bebendo por um tempo
até que ela quis dançar.
- Tudo bem,
mas já peço desculpas pelos seus pés!
Até que se
saiu bem. Seu pensamento foi nos amigos que deixara de chamar e qual seria a
reação deles se o vissem ali, dançando com aquela garota bonita. Estendeu-se
ainda um pouco mais nas coisas que havia deixado de fazer nesses últimos tempos
e que retomaria a partir do dia seguinte. Mas antes disso, a única coisa real
eram as mãos dele no quadril dela e os lábios dela no pescoço dele. Em meio ao
seu devaneio, sentia pequenas mordidas em seu pescoço.
Fosse pela
euforia de viver novamente, fosse pela dança, fosse pela garota, fosse pelas
cervejas, o fato é que ele não percebeu quando ela cravou os caninos em seu
pescoço e foi sugando-lhe toda a vida pelas veias. Demorou certo tempo para
perceberem que o cara caído no chão não estava legal.
- Malditos
drogados! - Xingava o dono do lugar.
- Malditos
drogados! – Resmungava o policial que chegou para ver o que tinha acontecido.
- Deve ter
sido uma overdose.
E foi com
essa possível causa que ele chegou ao IML para a autópsia. Pedro ficou
espantado quando acordou naquele lugar. Espantado mesmo ficou o legista quando
chegou à sala e viu o seu próximo trabalho saindo pela porta dos fundos. Pedro
já conhecia a saída.
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