sábado, 18 de dezembro de 2010

A madrugada é imensa

Acorda sobressaltada no meio da noite. Ouvira algum barulho na casa que a acordou. Podia ser qualquer coisa. Podia ser qualquer um! O pânico que tomou conta de seu corpo não lhe permitia nenhuma reação. Respirar era difícil, que dirá gritar por socorro ou pensar em alguma estratégia para se defender. Ficou deitada, esperando.
Os olhos na escuridão fitando a porta trancada, que a qualquer instante podia ser arrombada por aquele intruso. Veio à cabeça lembranças alegres de criança, o primeiro beijo, o primeiro dia na escola, o dia em que passou no vestibular, primeiro emprego, a briga com o melhor amigo que tivera na semana anterior. Dizem que, antes da morte, é possível ver toda sua vida perante seus olhos numa fração de segundo. Ela podia atestar que o que dizem é verdade.
Aquele tempo entre o despertar e a espera pela entrada iminente daquele invasor em seu quarto parecia interminável. Desejou, por muitas vezes, estar morta antes mesmo de ter acordado – teria lhe poupado a angústia. Tentou fechar os olhos e fechar e voltar a dormir, ou quem sabe, acordar do pior dos pesadelos. Tentativas em vão.
A noite sem lua era a mais quente da temporada. E mesmo que estivesse nevando lá fora, ela estaria suando da mesma maneira aqui dentro. Se pelo menos fosse mais religiosa, poderia ter rezado por todo o tempo de espera, mas esse não era o caso. Não gastou suas últimas horas tentando imaginar como seria o invasor, nem qual a motivação do sujeito ao invadir a casa, ou o que ele faria com ela dentro de instantes e muito menos rezando para um Deus que ela não acreditava. Não. Ela não jogaria fora a postura de uma vida só por que parecia chegar ao fim o seu tempo. Ela apenas esperou.
Os olhos já acostumavam com a penumbra e os objetos tomavam suas devidas formas e proporções na escuridão. Ela continuava esperando por alguma ação. Parecia um filme ruim. Continuou esperando por algo que não vinha. Depois de mais um tempo pensando a respeito, talvez o barulho que a fizera acordar tivesse mesmo vindo de apenas um sonho ruim. Desejou muito estar certa e concentrou-se em ouvir a casa - que emitia somente um leve gotejar na torneira da cozinha. Dormiu contando os pingos da torneira e lembrando o que o ex-melhor amigo lhe dissera semanas atrás. A madrugada é imensa.

sábado, 21 de agosto de 2010

Branco e Preto

Magra, mãos pequenas, estatura mediana. Nem se fizesse a careta mais feia conseguiria assustar alguém. Exalava simpatia. Pele branquinha, cabelos lisos escuros. Não dava pra distinguir onde terminava a pupila e onde começava a íris: era tudo negro. Engraçado isso, pois se, como dizem, os olhos são a janela da alma, os dela deveriam ser claros como um céu de verão. Bem, talvez não se deva acreditar em tudo o que dizem.

Não é que ela fosse o tipo perfeita - era mais do tipo que você sente enorme prazer somente em dividir a mesma sala. Acho que todo mundo conhece alguém assim. Se não conhece, deveria conhecer. Já!

Um tempo atrás, enquanto caminhava de volta para casa depois do trabalho, lembrei de Lucy. Na verdade, busquei com grande esforço alguém que em alguma ocasião tenha discutido, se irritado ou até mesmo levantado a voz com ela. Sem sucesso. Isso é bem estranho, na verdade. Ainda mais se for considerado os tempos difíceis que vivemos, em que qualquer boa ação é sempre vista como um pretexto para se conseguir qualquer coisa. Tempo difícil para os sonhadores.

De fato isso me intrigou. Recordações do tempo em que passei com ela vieram à mil. Como num quebra-cabeças, eu tentava encaixar todas as partes da velha Lucy que agora me parecia um grande mistério, jogando por terra a garota amável que sustentava na memória.

Vez ou outra eu lembrava de Lucy. Curioso isso, por que agora percebo que sempre foram em ocasiões de grande stress, de problemas e dessa baboseira toda que nossas regrinhas estúpidas nos obrigam a conviver. E Lucy sempre me ajudava. Talvez porque estar com ela tenha sido a melhor coisa que já experimentei na vida. Era uma sensação estranha. Era como fazer parte de algum mundo em que as coisas fossem perfeitamente cabíveis, em que se podia colocar o pé sujo no sofá branco e andar com roupas que não estão na moda sem ser repreendido por ninguém. Era como pegar todas suas planilhas, papéis do seguro, contas e jogar tudo pro ar, e em meio à chuva de papéis sentir-se muito melhor, como um astronauta ou uma estrela do rock. Lucy era pura utopia.

Contudo, era esquisito que ela sentisse exatamente o oposto a respeito dela. Ainda que amada e respeitada por muita gente, ela não se sentia nada especial. Talvez isso se deva ao fato dela nunca ter se sentido assim. Quando criança, era sempre uma das últimas a ser escolhida para os times de vôlei ou de futebol - e quando se é criança aquilo sim é ser especial! Crianças podem ser muito cruéis - como os adultos. Porém sem filtros.

Com todos os fatos e lembranças que expus é de se imaginar que a nossa relação extrapolasse os limites da amizade. Sim, tal dedução é perfeitamente cabível, mas inverossímil. Nunca aconteceu. Quem sabe por minha culpa, que nunca soube aproveitar as chances que ela dava, ou por culpa dela, que nunca aproveitava as chances que eu dava. Bem verdade é que eu nunca entendi muito bem o porquê de nunca acontecer. Mas desconfio. Afinal, todos amam os anjos, mas ninguém pode tê-los.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Plural singular

Dia desses no ônibus me apareceram aquelas duas figuras. Capturaram minha atenção de forma singular, com seus gestos frágeis de quem já viveu bastante e passou por muita coisa. Era um casal estremamente cativante.

Mesmo que já não conseguissem esconder as marcas do tempo, bastante presente em seus rostos que já não possuíam mais as características joviais de outrora, ela ainda mantinha-se vaidosa, tentando em seu ato simples, esconder a brancura de seus fios, disfarçando-os de vermelho. A cor do amor. E era isso que mais chamava atenção naqueles dois: o amor. Mesmo depois de décadas juntos, ainda mantinham relações de afeto visíveis, notadas pela maneira de falar um com outro e das pequenas sutilezas trocadas. Ela ainda era dele, como fora em seu primeiro encontro; e ele ainda era dela, como o fora em seu primeiro beijo.

E eles ainda mantinham-se juntos...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Desafogar-se

"- Talvez você devesse, sei lá, ser mais prático. É, é isso mesmo! Sabe, procurar algum significado real para sua vida, algum objetivo de verdade, não isso que você fala de felicidade plena e as outras coisas parecidas que eu não consigo lembrar agora. Eu sei que você tem um coração lindo e que sempre tenta ser legal com todo mundo, mas as coisas não podem ser assim. Não pode ser assim porque ninguém mais é! Isso de poesia e amor é legal, é bonito, é o tipo de coisa que você fala pras meninas para conseguir um beijo, mas pra vida não serve! Você tem que ganhar dinheiro, pagar as contas, comprar comida... seus livros e seus heróis mortos não podem fazer isso por nós. Por você! Você podia ter mais ganância, mais vontade. Meu Deus, todo mundo quer ficar rico, mas você só quer ficar ouvindo seus discos antigos e lendo essas velharias empoeiradas. Acho que tu nunca pensaste que, se fosses rico, poderia ter todos os discos e livros antigos já produzidos. Eu não ligo a mínima se você não acreditar em mim, mas eu ainda te amo. E acho que vou amar pra sempre. Entretanto eu não posso continuar com você. Tu me prendes. Preciso muito abrir minhas asas e voar. Migrar pro sul. Por favor, faz o mesmo! Não quero ver você morrer congelado."

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Para um diamante qualquer

"- Meu bem, calma aí . . . Por favor permaneça uma criança em algum lugar no seu coração!
- Você não me ama mais? [barulho de carros e gritos ao fundo]
- Não se trata disso...
- Trata-se do que então?!



Eu tenho uma toalha com o número 42 que levo pra todo lugar.
Eu sou jovem e ainda me iludo com minhas esperanças.
Eu tenho a droga da luz elétrica.
Eu sou um ser racional [somos?] e faço parte da porcaria do progresso. Isso não é o bastante pra você?

Eu tenho uma capacidade incrível de conhecer os segredos das pessoas.
E eu tenho um senso maravilhoso de observação(que, por sinal, você nunca percebeu).
É por isso que não perco minhas fichas tentando ligar pra você, pois sei que não está em casa.

Eu tenho todos os doces que você sempre desejou.
E eu tenho as fileiras prontas para você.
Eu tenho os seus diamantes!
E eu conheço a fada que te faz bem...

Mas ainda não te ligarei, pois ainda não haverá ninguém em casa (Hello?! Is there anybody in there?Is there anyone in home?).

Eu tenho os meios para qualquer fim.
E parece que ele está cada vez mais próximo...


Em algumas coisas você não é tão boa.
Como em sorrir, em chorar e mentir.
Algumas pessoas se tornam muito confiantes, babe."

sábado, 17 de julho de 2010

Naquela noite, eles poderiam ter conversado sobre qualquer coisa. Poderiam ter falado sobre a origem da vida, o universo e de tudo mais. Poderiam ter tido aquela conversa de gente que não se conhece muito bem, falando sobre futebol, tevê, colocando a culpa no governo de qualquer coisa que ele talvez nem fosse culpado, sobre como está quente e se questionando quando vai chover. Poderiam ter discutido essas coisas que a gente discute com o chefe, o professor, a mãe ou qualquer outro tipo de autoridade. Poderiam ter falado de planos, filhos, carreira, religião, futebol, política e esses outros assunto que a gente não discute por que sempre acaba em confusão. Em noites assim, a gente fala de coisa que nem se deve falar.

Quem estivesse na Rua Harmônica e entrasse no bar que existe próximo ao fim da rua (que não tem saída) logo veria um casal discutindo sobre, basicamente, qualquer coisa. Ou todas as coisas. Poderia, ainda, pedir uma cerveja gelada enquanto aguarda o prato do dia, o qual é sempre melhor que o do dia anterior, e contemplar a discussão.

Ela parecia ser bem maior enquanto falava. Bem assim como uma gata que se arma para parecer maior antes da investida. A cabeleira loira tornara-se prata sob o luar e os olhos negros indicavam a que ponto(s) olhar na face branca. Ele parecia não se assustar com a intimidação dela e sustentava durante todo o tempo um sorriso de canto de boca.

Quando chegava a vez dele de falar, ela impunha ao ambiente uma serenidade que poucas vezes apareceu por aquelas bandas. Ele continuava com seu sorriso sem alterar a sua postura no embate.

Ficaram a noite inteira conversando no bar. Por fim, ele deu-se conta que concordaria com qualquer coisa que ela dissesse. E ela percebeu que havia muito tempo desde que alguém a ouviu com tamanha atenção.

Ela cheirava a chocolate.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Preto e Branco

"Era uma vez, Deus. Sentindo-se muito solitário, Deus criou um planeta. Depois disso, para lhe fazer companhia, resolveu criar seres para viverem no planeta. Deus estava tão empolgado com sua brilhante idéia que resolveu desenhar, o mais rápido possível, todos os seres que viveriam no planeta. Pegou sua caixa de lápis-de-cor e alguns papéis e pôs-se a desenhar. Gastou horas e horas com isso, imaginando, desenhando, apagando e redesenhando tudo o que gostaria que tivesse no planeta. Com o lápis azul desenhou um grande oceano, vários lagos e rios. Com o lápis verde, coloriu várias florestas pelo planeta. Com o lápis amarelo e com o preto, desenhou as onças, pumas e jaguares. Com o cinza, elefantes, rinocerontes e hipopótamos. Com várias cores desenhou pássaros e peixes. E assim, nesse processo, foi preenchendo a Terra com tudo o que havia imaginado. Contudo, quando chegou a vez de desenhar as pessoas, Deus começou a ficar sem lápis coloridos. Dessa forma, não pôde dar aos seres humanos a mesma diversidade de cores que fora dada aos animais. Mesmo com essa dificuldade, conseguiu se virar muito bem e desenhou milhares de pessoas para o planeta. Entretanto, quando Deus foi desenhar Lucy, só lhe restara o lápis preto. Como tinha pressa, e agora poucos recursos, Deus decidiu empenhar-se ao máximo nesse projeto. Gastou muito, muito tempo desenhando apenas com lápis preto uma garotinha. Deu bastante atenção aos olhos. Desenhou e apagou dezenas de vezes aos mãos, pois queria algo de aspecto frágil, mas que pudesse ter a força de 10 homens de vez em quando. Ficou muito tempo rabiscando os cabelos, fio por fio. Lucy deu muito trabalho e quando ficou pronta Deus teve que criar uma categoria para encaixá-la, e daí nasceu a idéia que temos de perfeição. Ela não tinha sido apenas mais uma das obra do cara que criou tudo, mas tinha sido 'A' criação, 'O' desenho, mais ou menos como 'E'le. Hoje Lucy anda por aí, gabando-se inconscientemente de ter sido produto de apenas um lápis preto no papel branco, sentindo orgulho de ser um dos melhores, e preferidos, desenhos de Deus!"

domingo, 27 de junho de 2010

Carta à Senhorita Mãos Geladas

Ontem sai com o pessoal da faculdade. Nós fomos num lugar legal no centro da cidade. Fazia tempo que a gente não saia junto e, pra ser sincero, já começava a sentir falta. Eu me sinto muito bem com eles, com as diferentes personalidades de cada um. São pessoas realmente muito legais. Você gostaria deles se os conhecesse. Eu me diverti bastante. Senti sua falta em todos os momentos.

Na entrada, enquanto eu remexia minha carteira, lembrei de como você pegava logo as notas mais fáceis para o troco diante da minha sempre falta de jeito com as cédulas. Quando fomos procurar algum lugar pra sentar, lembrei da sua mania de limpeza e de como detestava bancos sujos, e que sempre tirava da bolsa algum lenço ou coisa do tipo e tentava amenizar o problema. Na hora de pedir algo pra comer, visualizei você ali, perguntando ao garçom se o prato que queria pedir tinha carne de porco ou algum tipo de bebida alcoólica, já que não podia comer nada daquilo por causa da sua religião.

Apreciava a idéia de que, de alguma forma, a saudade fosse amenizada com o tempo, mas ao que parece, ele é só combustível. Tudo aquilo com que eu implicava me faz falta.

Embora nada do que eu disser possa trazê-la de volta, eu precisava contar que ainda sinto falta das suas pequenas mão geladas.

sábado, 26 de junho de 2010

Umas palavras

Algum dia você vai ter que me perdoar, mas eu preciso escrever qualquer coisa sobre você. Desculpe-me se não consegui parar de te olhar na festa de hoje, deves ter percebido isso. Mas é que a maneira como cantavas baixinho a música que tocava era hipnotizante. Longe das pessoas, alheia ao que acontecia, brincando com seus cabelos escuros, sentada sozinha, você recitava suas palavras mágicas que criavam um campo iluminado ao seu redor. Você brilhava e ninguém mais notou. Em vários momentos quis lhe falar, mas não sabia como começar, o que dizer. É sempre assim quando estás por perto. Deve ser por causa do seu encanto e das palavras mágicas.

domingo, 13 de junho de 2010

O Coração Amarelo

Uma vez ele me deu seu coração. Era um coração amarelo. Aquilo me marcou porque era estranho ganhar um coração amarelo. Todos os corações que eu havia ganhado dos garotos até aquele momento eram corações grandes, vermelhos, daqueles que enchem os olhos, sabe? Esse não. Era só um coração amarelo, sem muita expressão. Parecia um pequeno chaveiro, daqueles que a gente encontra nas lojinhas.

Sempre pensei que ele sendo quem era teria um coração completamente diferente. Tá certo que eu nunca tinha parado pra pensar bem em como eu achava que era seu coração, mas eu sabia que era diferente. Mas um diferente legal, tipo White Stripes, saca? É, isso mesmo. Tipo White Stripes: um negócio diferente, mas legal, que atrai a atenção das pessoas pela forma única que é. Talvez ele tivesse um coração assim, grande, com listras brancas, vermelhas e pretas e que fosse um virtuose da guitarra! Mas amarelo?! Amarelo não é cor de coração! Amarelo é a cor que a gente usa pra pintar o sol quando estamos no jardim de infância e a professora manda colorir um desenho da nossa casa. Amarelo é cor de banana. Poxa, ele me deu um coração cor-de-banana?! Se ele não fosse quem ele era, eu teria jogado aquele coração cor-de-banana sem graça bem longe na mesma hora que ele me entregou.

Nos conhecemos na escola. Ele era de uma séria anterior à minha. Os amigos dele eram do tipo popular, sabe, daqueles que são conhecidos e conhecem a escola inteira, e a gente acabou se conhecendo. Apesar dos amigos, ele não era bem do tipo popular. Tirando o pessoal da sala dele, eu e duas amigas minhas, ele não falava com mais ninguém. Sem contar que boa parte do pessoal da sala dele não ia muito lá com a sua cara. Pessoalmente, nunca entendi isso. Hero era até um cara legal, inteligente e se esforçava muito para ser divertido. Vai ver que esse pessoal se encaixa naquilo que dizem de a gente temer o que não entende. Se você pensar assim, fica mais fácil sacar o motivo dele ter poucos amigos.

Tem também esse negócio do nome, né? Pô, Hero?! Os pais dele também não ajudaram em nada! Que droga de nome prum garoto! O que aconteceu com Antonio, João, Pedro, Manuel... Com esse nome o pessoal já chega pensando que ele é um daqueles carinhas metidos à besta.

Ele salvou a minha pele várias vezes enquanto ainda estávamos na escola. Teve uma vez que ele até fingiu ser meu namorado numa festa que fomos! Quando lembro dele não consigo pensar em nada de ruim em toda nossa história de amizade. Não, não é que eu só me lembro do que quero lembrar, que seriam as coisas boas, é que realmente não há nada de ruim.

Depois que a escola acabou e entramos em faculdades diferentes continuamos nos falando, mas já não era a mesma coisa. Foi nesse período que ele me deu o coração amarelo. Tinha acabado de voltar de uma viagem e me ligou dizendo que tinha uma coisa importante pra me dar. Claro que eu nunca imaginei que ele queria me dar o coração. Pra falar a verdade, pensei que isso nunca iria acontecer, pois a fase dele me dar o coração era quando estávamos na escola, que éramos grandes amigos. Ele chegou e me deu o coração. Simples assim. Será que ele havia mudado tanto? E que porcaria de amiga eu era que não havia percebido? Fiquei surpresa quando eu desembrulhei o pacote e vi o coração. Acho que ele não percebeu minha surpresa em ver o amarelo do coração - na verdade, eu torço pra isso!

Por muito tempo eu fiquei reclamando do coração estranho que ele me deu, mas só agora percebo que eu é que sou a estranha e nem deveria ter recebido nada. Ele me deu o coração. Era tudo o que ele podia dar. Era aquilo que ele tinha pra me dar e eu só critiquei. A verdade é que eu fiquei com medo de dar o meu coração. Acho que isso o teria feito muito feliz. Só conseguia pensar que, assim como eu, ele só iria ver o lado estranho. Nem passou pela minha cabeça que ele era a pessoa mais doce que eu conheci e que, ao contrário de mim, ele só via o lado bom das coisas. Hoje eu tenho dois corações, ele nenhum.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Pensa

Pensa em se levantar. Pensa em ir ao banheiro. Pensa em tomar banho. Pensa no café, no pão, no açúcar. “Será que vou me atrasar?”. Pensa no trânsito, nas buzinas, nas pessoas chateadas já pela manhã. Pensa nas contas a pagar. “Será que vou me atrasar?”. Pensa no cigarro, no trabalho e no café. Ah, café...! Pensa nos amigos, nos antigos e nos novos. “Quantos são os novos?”. Pensa no que não fez. Pensa no que gostaria de ser. Pensa no que se tornou. Pensa na Sofia. Sofia... Sofia! Pensa no chefe. Pensa no salário, no trabalho e na sua insatisfação. Pensa em como a vida é dura e sua cama é macia. Pensando bem, dormiu o dia todo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Queria que você estivesse aqui

10 e 27 da noite. Praça de São Michel em Paris.
- Vamos por aqui.
- Pra onde?
- Sei lá! Vamos pegar o metrô e sair dessa chuva. Tô com muito frio!
Ela gostava de dar as ordens. Estava no auge dos seus vinte e poucos anos e tinha deixado os pais e seu país natal havia algum tempo. Era uma dessas garotas fortes e decididas que estão sempre com pressa e com dezenas de coisas superimportantes para fazer que encontramos em toda grande cidade. Quanto a ele... bem, digamos que prefiria uma cerveja gelada com o pessoal da faculdade a tirar dez na prova do dia seguinte. Oito tá bom demais!
Na estação, uma banda com 4 caras tocava tentando ganhar algum trocado. Claro que ela não deu atenção alguma a eles - estava ocupada demais puxando-o apressada para a plataforma.
- Eu não quero que você vá.
Ficaram ali abraçados por um bom tempo. Ela já não sentia o frio de quando entraram na estação. E como numa cena dessas comédias românticas que a gente assiste mesmo já sabendo como vai acabar, aquela banda começa a tocar uma música que ele conhecia bem.
- Wish you were here.
- O quê?
- A música. Wish you were here. Pink Floyd.
- Desculpa. Não conheço.
Sussurrou no ouvido dela as primeiras estrofes. Após isso, finalmente o beijo aconteceu. Poderia ter acontecido antes, já que passaram a tarde inteira andando por Paris, mas você conhece algum lugar mais romântico que uma estação de metrô?!
- Tenho que ir!
- Espera...
- Tá tarde, tenho que ir! Desculpa! Me manda um e-mail quando chegar no hotel?
- Tudo bem.
E foi. Wish you were here.

terça-feira, 27 de abril de 2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Rolling Stone

Era madrugada e as palavras do Dylan não saiam da cabeça.

How does it feel to be on your own, with no direction home, like a complete unknown?
Like a rolling stone?

Resposta ele ainda não tinha, mas já tinha as direções.
E você?

terça-feira, 13 de abril de 2010

Any colour you like

Abriu os olhos devagar, deixando a luz entrar aos poucos em sua retina. Sentiu um prazer infantil naquilo. A luz que penetrava a janela de vidro era suficiente para iluminar parte do pequeno quarto do apartamento em que estava. "The Great Gig In The Sky" ainda ecoava em sua cabeça quando procurou perceber os detalhes do quarto que na noite anterior o acolhera de forma tão calorosa.

Deitado na cama, meio coberto, meio nu, achou graças dos pôsteres de bandas de rock pendurados na parede. "Eu tinha isso aos quinze!"

Não era grande o apartamento. Na verdade, era tudo o que uma estudante de arquitetura podia pagar com a grana do estágio e dos pequenos projetos que pegava aqui e acolá. Contudo, era uma bom lugar para se estar. Pequeno e aconchegante. Assim era o apartamento. Ele não conhecia nada daquele apartamento além do quarto que começava a descobrir.

Sentou-se na beirada da cama e sentiu uma leve dor de cabeça que seria sua companheira pelo restante do dia. Reconstrui o percurso da noite: barzinho com amigos, garota legal na mesa ao lado, táxi, casa dela. Casa. "Gosto de estar em casa quando posso. Qual foi o último lugar que chamei de casa?"

Voltou a examinar o quarto, que parecia bagunçado com todas aquelas roupas espalhadas pelo chão. Com pouco de esforço, conseguiu reconhecer as suas roupas. Reconheceu também as roupas que ela usava horas antes. A camiseta dos Ramones parecia menor colocada daquele forma sobre o encosto da cadeira e a calça que antes era apertada agora jazia sem função junto ao pé da cama.

Como num instinto, desviou o olhar para procurar a dona daquelas roupas perdidas pelo chão. Por sobre o ombro esquerdo, e com a embriaguez se esvaindo, ele olhou para ela. Admirar seria a palavra mais correta. Coberta em parte pelo cobertor, em parte pela sombra que se instalara naquela parte do quarto, ela estava eclipsada sobre a cama.

- Uau, ela é linda!

E realmente era. Bem mais até do que ele conseguia se lembrar. O cabelo vermelho contrastava com a pele branquinha de seu rosto, decorado ainda com pequenas sardas pelo nariz. "Any colour you like". Estavam todas ali. Deitada de lado, com cabelo sobre os olhos, afogava-se inocentemente em sonhos. Se anjos existissem, era daquela forma que deveriam parecer. Ficou muito tempo ali sentado, admirando seu anjo pessoal respirar. Ela possuia uma serenidade ímpar, sobrenatural até. E ele que esteve furioso durante tanto tempo queria apenas falar com ela. Fale comigo. Fale sobre onde você esteve, fale sobre os planos profissionais que comentamos rapidamente noite passada, fale sobre seus pais, fale sobre música, fale sobre nós e sobre eles. Fale seu nome que não consigo lembrar - Laura, Luisa, Maria, Melissa - não consigo lembrar. Fale sobre o que você ama, sobre o que odeia, sobre o que vê, o que sente, o que acredita, o que compra, acha, empresta ou rouba. Fale sobre o que você cria e o que destrói, o que faz, come, a quem você fere e com quem você briga. Claro que ela não respondeu, continuo apenas respirando.

Enquanto ele ainda a admirava, o eclipse dissipava-se no quarto. E ela que antes apenas respirava, agora o enfeitiçava com palavras e olhos azuis. Any colour you like.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Quintessência

Detestava aquele tipo de festa. Embora fosse sempre alegre e efusivo, sentia-se tremendamente mal naqueles tipos de eventos, em que as pessoas assemelhavam-se a zumbis balançando o corpo de maneira incontrolável.

Tentara, sem sucesso, adaptar-se diversas vezes. Afinal poderia ter tido algumas experiências ruins das primeiras tentativas. Mas não conseguia. Nunca iria conseguir. A batida eletrônica ritmada e constante daquelas músicas não foram feitas pra pessoas como ele. E vice-versa. E tudo mais naqueles eventos o irritava. A quantidade de pessoas consideravelmente grande que se podia comportar em lugares tão pequenos era algo com que ele realmente se admirava. E se irritava. A enorme fila para entrar, para ir ao banheiro, para comprar cerveja. Isso categoricamente o irritava.

Gostaria muito de estar em outro lugar. Seria bom ouvir algum acorde de guitarra e uma voz que, de fato, cantasse. “O que estou fazendo aqui!?”. Mas sabia exatamente por que estava ali. Por causa dela.

Nas últimas semanas não estivera em outro lugar. Estava sempre com ela. Embora ela não estivesse.

Ela era normal. Os mais desavisados não notariam nada de especial naquela magricela. Definitivamente uma garota como outra qualquer. Destacava-se apenas pelas duas janelas com vista permanente para um imenso e calmo mar esverdeado. E era isso, aquelas duas janelas, que o atraía há semanas.

Já tinha chegado há um bom par de horas e se sentava com alguns amigos próximo de onde as pessoas dançavam. A aquela altura o álcool balbuciava suas primeiras palavras. Ele e os amigos conversavam sobre diversos temas sempre, mas os preferidos eram seus excêntricos professores, música, garotas e, dependendo do grau etílico da noite, sobre o universo e poesia. Falavam exatamente sobre Dylan quando ela chegou. Cumprimentou rapidamente a todos e foi dançar, afinal estava ali para isso. Ele também foi. Acompanhado, é verdade, de algumas latinhas de cerveja.

Disse tudo que queria dizer. Enquanto falava percebia que já não escutava suas palavras, tampouco a música que tanto o irritava. Notou ainda que sua visão tornava-se turva, perdia o foco. O único ponto nítido naquele furacão era ela. Toda sua atenção, todos os sentidos. Tudo era ela.

Ela ouviu com surpresa o que ele disse. E durante a vez dela de falar, ele percebeu o desfecho daquilo tudo. Pra ser sincero, poucas eram as chances dela ter por ele ao menos metade do que ele tinha por ela. E ele sabia.

Antes que ela pudesse terminar de falar, ele aproximou seu rosto e sussurrou “quintessência” em seu ouvido, mesmo aquilo não fizesse o menor sentido para ela. Para ele fazia. Sentiu-se bem após fazer isso. Sentiu-se como há muito não sentia. Sentia que podia dominar o mundo.
Despediu-se dos amigos e saiu. Estava uma bela noite lá fora. A brisa fria fê-lo sentir alívio. Nos dias que seguiram sustentou a sensação daquela noite, com o detalhe de não mais sentir com embriaguez. Queria dominar o mundo. Despediu-se dos amigos e saiu. Era um belo mês de maio aquele lá fora.

sábado, 3 de abril de 2010

Como era de se esperar.

9 e 32 da manhã. O banco abre às 10 e eu já estou na fila. Eu e muita gente. Só me dei conta que era o último dia útil antes do feriado prolongado quando cheguei lá. Tarde demais para voltar. Quando cheguei já havia muita gente, e muito mais viria. Todas extremamente preocupadas, com cara de poucos amigos e devidamente apressadas. Como era de se esperar.

Atrás de mim estava uma senhora simpática, daquelas velhinhas simpáticas que a gente vê nos filmes de cinema. Aparentava preocupação. Não essas preocupações cotidianas, pagar as contas, entregar o trabalho no prazo, arrumar o carro, lavar a roupa, consertar a torneira da pia da cozinha... Preocupava-se com algo que transcendia. Talvez a idade avançada traga outro tipo de coisas para se preocupar. Para os mais místicos, o que acontece depois da morte. Para os religiosos a salvação. Para os que têm filhos, o que será deles. Para ela, a vida. A vida que vivera, os caminhos que percorrera e as escolhas que fizera até aquele momento. Esse era o meu palpite. Seus olhos traduziam o cansaço de uma vida inteira. Olhava fixamente para um ponto qualquer no chão do banco lotado, com a postura de uma...

- Sem vergonha! Moleque mal educado! Respeita...

Pessoas extremamente preocupadas, com cara de poucos amigos e devidamente apressadas. Como era de se esperar. Sempre acontece.

Notei então uma garota um pouco à minha frente. Era jovem, 20 e poucos anos, e estava com a roupa que usaria na academia depois do banco. Os cabelos amarrados exibiam seu belo rosto, que seria apenas um bonito rosto se não houvesse nele o par de olhos castanhos claros que lá existiam. Parecia simpática, e minha hipótese fora confirmada quando puxou conversa com as pessoas próximas. Em grandes filas sempre acontecem conversas casuais sobre a demora no atendimento, o calor que está fazendo, o governo que nunca faz nada e sobre o que ele deveria fazer. Todo mundo sempre tem alguma solução. Curioso é que só o governo não a tenha.

Um funcionário do banco começava a distribuir senhas na tentativa de agilizar o atendimento. Iria demorar até eu receber a minha.

Ao contrário da velhinha simpática atrás de mim, a garota não a aparentava preocupação, nem mesmo pressa ou cara de poucos amigos. Teria que esforçar-se bastante para conseguir ter uma cara de poucos amigos. No intervalo de sua conversa casual, após passar as costas das mãos na testa suada, fixava o olhar em algum ponto no chão do banco lotado. Assumi que pensava no horário que sairia da academia a qual iria depois do banco. Se aqui demorar mais que o esperado terá que apressar-se nos exercícios. Talvez eu tenha sido ingênuo, afinal aquela garota de belo rosto poderia ter sim grandes preocupações. Talvez pensasse nas contas a pagar, nos trabalhos a entregar, no carro que tem que arrumar, na roupa suja acumulada e na torneira da pia da cozinha que não parava de pingar. Ainda poderia ela ter preocupações como as que a idade avançada traz. Entretanto não pude mais supor no que ela estaria pensando pois o funcionário do banco que tentava agilizar o atendimento havia acabado de me informar que “hoje o serviço que o senhor deseja está indisponível”.

Deixei o banco, que estava agora com o dobro do número de pessoas que havia quando cheguei. Enquanto caminhava, lembrava daquela velhinha simpática que a gente vê nos filmes de cinema e das suas preocupações. Lembrava ainda daquela jovem de 20 e poucos anos que iria mais tarde à academia. Elas e todas aquelas outras no banco com preocupações, atribulações, contas a pagar e coisas importantes a fazer. Ah, talvez aquela garota de olhos castanhos claros pensasse, quem sabe, em seu namorado!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cinco da tarde

Por Borges Júnior


1. Ele embarcou no ônibus e se pôs a ler sua revista, daquelas revistas de heróis americanos. E já não era mais nenhum adolescente, mas um homem barbado - barbado mesmo, sem força de expessão. Um homem jovem, beirando os 30. Usava óculos de lentes grossas e armação quadrada e fina. Não era desses óculos de armação grossa plástica que alguns usam para aumentar a inteligência; ele usava os óculos por necessidade mesmo. E usava-os agora para ler sua revista, alheio do mundo. Capitão América, talvez.
Tinha a introversão estampada no rosto. Na minha cabeça, deduzi que fosse estudante ou recém-formado de algum curso das Ciências Exatas. Algo relacionado a informática, se me permite o palpite. Pois, estava ele sentado próximo à janela, enquanto os outros passageiros buscavam os últimos assentos livres.

Então sobe uma moça, mais ou menos da mesma idade - quem sabe uns meses mais nova. Escondia os olhos atrás dos óculos escuros. Era esbelta, com cabelos alisados; tinha a aparência padrão das moças de classe média. Não era bonita, mas vaidosa, enganava os desavisados. Parecia uma jovem viúva, embora usasse blusa vermelha com calças jeans escuras. Muito séria, ela. E já que falamos de um suposto curso para o rapaz, falemos para a moça também. Odontologia lhe cairia bem.

Não percebi se havia algum outro assento livre no ônibus, mas aconteceu que o que estava ao lado do nosso míope estava livre, e então, o que já se poderia deduzir ocorreu: a jovem não-viúva sentou-se ao lado do adolescente-adulto. Ora, fato mais trivial em um ônibus é o de pessoas desconhecidas sentarem próximas umas às outras, e não importa a duração, elas sempre seguem o rumo de suas vidas no fim da viagem. E de fato, o par ali formado era apenas mais um entre tantos outros. Ele lia os quadrinhos e não se importava com mais nada; ao passo que ela imergia nas preocupações, enquanto descansava os olhos na paisagem da janela.
Mas eram cinco da tarde, e nesse horário é possível olhar para o sol sem machucar os olhos. Os dois intuitivamente olharam, então, para o sol que pintava o céu no fim da tarde. Ele então percebeu a presença da moça, e virou-se para ela.

Às cinco da tarde também é possível ver os olhos escondidos atrás de lentes escuras, e ele olhou os dela. Ela de início rejeitou tal atitude, e o ignorou. Mas ele que insistisse, ela acabou por ceder à curiosidade que mora em nós sempre que somos alvos de algum par de olhos, e um sorriso curto apareceu-lhe nos lábios antes que ela pudesse evitar.
Odontologia? Acho que não errei. Conversas e risos encabulados, e claro, alguns minutos de silêncio que os faziam desesperadamente procurar um novo assunto para retomar a conversa e a companhia naquele ônibus.

A parada em que ele desce já estava há muito para trás. Nas mãos do moço, a revista fechada e dobrada em cilindro. Eles são bons em achar assuntos. Ele chegava a gesticular em alguns momentos. Enfim, decidiu descer duas paradas depois da dela. Pra despitar talvez - que bobagem. Depois que ela havia descido ele ainda conservou um sorriso teimoso.
Eu desci onde deveria e segui meu caminho.

Semanas depois, ainda o vejo algumas vezes no ônibus, ela um pouco menos, mas ainda a vejo. Nunca mais juntos. Sem a barba, sem os óculos escuros.

Sentem falta das cinco horas.

domingo, 28 de março de 2010

Palavras sobre ela

Estranho mesmo é quando você analisa momentos de sua vida de uma maneira isolada, alheio àquilo tudo. Ser espectador-crítico da sua vida pode ser muito estranho. Mais estranho ainda são como as coisas acontecem.

Éramos da mesma turma na faculdade e já havia idealizado a ocasião exata para dizer a ela que sua imagem não saia da cabeça fazia muito tempo. Gostava quando ela usava lápis de olho, realçava os olhos verdes em um rosto lívido coroado de dourado. Me lembrava os Rolling Stones.

Sempre entretida com alguma outra coisa, revista, livro, amigas, quase nunca a via sozinha. E quase nunca falava com ela. Um ano após termos nos conhecido devo ter trocados um punhado de frases com ela, sempre as que a boa educação nos manda. Ela de Vênus, eu de Marte.

Mas como já disse, estranho é o modo como as coisas acontecem.

Estávamos todos na porta da faculdade, jogando conversa fora após sairmos cedo da aula, quando aconteceu.
- Vamos comer uma pizza!

Em meio àquele ambiente de conversas frívolas e alegres, ninguém deu muita atenção ao que ela dissera. Eu dei. Indo para o carro de uma amiga que a levaria em casa, chamei sua atenção: - cadê a pizza?

Frases simples e desconexas podem transformas nossas vidas. Quem já falou com um desconhecido que sentava ao seu lado no ônibus sabe o que estou falando. Aquela frase simples jogada ao vento atua com grande força no gelo que existe entre pessoas desconhecidas, despedaçando-o em parte dos casos. Quem já conversou com aquela pessoa que lhe parecia interessante na fila interminável (e imóvel) do banco sabe do que estou falando. Em alguns casos nada acontece e você segue sua vida como se nada tivesse acontecido. Às vezes você nem perguntou o nome daquela pessoa. Às vezes aquela frase não fará nenhuma diferença e você não conhecerá ninguém legal. Mas essa não era uma dessas ocasiões irrelevantes que nos acompanham na vida. “Cadê a pizza” foi uma frase de impacto.

Acompanhei-a até o carro de nossa amiga, que ia à frente com outro amigo. O assunto já era um diferente de pizzas. Por um caminho que eu desconheço, falávamos sobre relacionamentos. “Quero terminar a faculdade e encontrar alguém legal. Quero casar. Três filhos. Duas meninas e um menino pra cuidar das irmãs. Cansei desses namoros. E você?”

O que eu poderia dizer!? A garota que eu gostava contando seus planos para o futuro numa conversa casual. Eram grandes planos. Bons planos. Eu não tinha nenhum. Me pareceram bons planos, queria fazer parte deles. Queria fazer parte deles? Uau, estranho mesmo são como as coisas acontecem!

Respondi qualquer coisa que não lembro agora, apenas para continuar aquela conversa que tinha sido a mais longa desde que nos conhecemos.

Quando ela entrou no carro, virei para o meu grande amigo e disse o último verso de “Queria apenas cinco coisas” de Neruda. Pablo Neruda é fantástico. Planejava dizer as palavras desse soneto à ela havia algum tempo, mas minha situação idealizada não havia chegado. A situação real estava ali. Ela baixou o vidro e perguntou o que eu disse. “Neruda. Queria apenas cinco coisas”. Ela ia pesquisar. Sua curiosidade era grande, tinha certeza que ela iria pesquisar. As palavras que imaginei serem ditas por mim ela iria ouvir do próprio Neruda.

E ela pesquisou.